A música latino-americana dos séculos XX e XXI
Este artigo contém uma categorização dos diferentes movimentos estilísticos na música latino-americana dos séculos XX e XXI.
É bem conhecido que a geografia e a paisagem latino-americana são caracterizadas pela sua exuberância e diversidade, a música é expressa de múltiplas formas e modos e isto em si mesmo é uma força. Esta visão da música dá-nos pistas do que ela representa para os criadores de Arte na América Latina a coexistência com uma natureza que domina qualquer sentimento; uma experiência que vai muito além mesmo do romantismo europeu, pela mesma qualidade e heterogeneidade da paisagem.
Duas serão as encostas da abundante torrente musical latino-americana. A chamada música académica, aquela que é estudada nas escolas e conservatórios, aquela que é alimentada por fontes europeias e aquela que é criada pelos povos como uma simbiose dos indígenas, dos africanos e na qual o europeu também está integrado, que no final é chamada popular ou folclórica. Por outro lado, a música denominada étnica é equivalente a outra torrente profusa que exige particular atenção e estudo. A etnomusicologia tratará disso, mas isso é outra questão.
Antecedentes da música clássica no continente
A música europeia chegou às Américas através da divulgação da mesma pela Igreja Católica. Assim, cada região, por muito diferente que seja, acabará por ser integrada numa única concepção teológica, a imposta pela religião vinda da Europa, uma tarefa a cargo dos jesuítas e franciscanos através das "missões" ou "reduções indígenas". Com a actividade evangelizadora, dos séculos XVI ao XVIII, foi gerado um poderoso movimento musical na maior parte da América Latina, culminando no "barroco americano", um movimento também conhecido como "música colonial americana". As catedrais de países como o México, Brasil, Peru, Paraguai e Argentina, preservaram nos seus arquivos valiosos exemplos de música destes séculos. Trata-se de obras dedicadas à voz humana, especialmente à polifonia vocal.
Esta inestimável informação foi encontrada em arquivos como o de Santiago de Chiquitos, na Catedral de Quito, em Chimborazo e Riobamba no Equador, ou na Catedral de Oaxaca no México. Na Biblioteca Nacional de Lima, por exemplo, é preservada a obra coral americana mais antiga: Hanac Pachap cussi cuinim, ou seja, um Credo em quíchua sobre uma base de melodias gregorianas. Obras dos compositores Cristóbal de Morales ou Tomás Luis de Victoria, entre outros espanhóis, também foram encontradas nas catedrais de Oaxaca, México e Puebla. O seu estilo foi admiravelmente assumido por compositores nativos tais como Juan Xuárez, Lázaro del Álamo, Juan de Victoria e Hernando Franco.
Por outro lado, quanto às estruturas composicionais mais adoptadas na América, o Motet, a Missa, ou o Villancico, são as formas europeias de maior utilização nas terras conquistadas. Quanto aos instrumentos mais utilizados, por volta do século XVIII, o órgão irá ocupar um lugar preponderante nas igrejas. Ao mesmo tempo, a harpa, a guitarra e os seus derivados -como os tres e cuatro e o charango, para mencionar alguns-, acabarão por fazer parte da cultura popular e folclórica dos povos da América, espalhando-se rapidamente por todo o continente: vihuelas, shawms, sacabuches, flautas e clarinetes vieram destes primeiros luthiers da América, instrumentos utilizados na execução de música secular.
Para concluir este esboço dos antecedentes musicais e composicionais da música latino-americana, devemos salientar que no final do século XVIII e início do século XIX, as claras influências do classicismo europeu já podem ser percebidas nas composições dos latino-americanos. Deste período, destacam-se a Escola Minas Gerais no Brasil com os compositores J. J. E. Lobo de Mezquita e M. Coelho Netto e a Escola de Chacao em Caracas, Venezuela, com uma primeira geração de compositores chefiada por José Francisco Velásquez o Ancião, José Antonio Caro de Boesi e Juan Manuel Olivares. Mais tarde vieram José Ángel Lamas, Juan José Landaeta e Cayetano Carreño. Todos eles assimilaram perfeitamente a estética dos compositores pré-clássicos. As orquestras chegam a uma organização interna semelhante à da orquestra de Haydn, ou seja, cordas, oboés e cornos. Os Tons, as Sonatas, as Sinfonias, assim como as massas, são as formas recorrentes nestas escolas.
O romantismo é outro dos movimentos estilísticos das raízes europeias que irão germinar no continente americano. Trabalhos de Beethoven, Chopin, Mendelssohn, Schubert, entre muitos outros, foram incorporados no repertório dos teatros e encontros familiares dos Creoles da América. Sendo o piano o instrumento que deu maior prestígio a uma família, em breve, muitos deles organizariam encontros e reuniões familiares nas quais interpretariam ao piano: polkas, mazurkas, valsas, cuadrillas entre outras danças.
Compositores Paradigmáticos do Século XX
Numa carta enviada pelo musicólogo Alejo Carpentier de Caracas ao compositor francês Edgard Varèse - autor do famoso Les Amériques - o cubano descreveu com um certo pessimismo o desenvolvimento do movimento de compositores de países sul-americanos, destacando apenas alguns países como depositários de uma cultura, de uma educação e de uma produção musical que poderia ser resgatada.
Este pessimismo não reside tanto na inexistência das suas produções, mas sobretudo na ingenuidade dos temas e na inserção de estruturas e linguagens do pós-romantismo ou neoclassicismo europeu da primeira metade do século XX, que, longe de constituir uma transgressão, imitam simplesmente a inércia criativa importada do velho continente. Do mesmo modo, os temas e enredos indígenas propostos aparecem evocados em termos idealistas, adocicados e inanos, sem pisar qualquer novo caminho musical ou enfrentar quaisquer riscos criativos adicionais.
Tudo considerado, Carpentier resgata o trabalho de alguns dos criadores que mais profundamente marcaram a evolução musical do continente, lançando as bases da identidade, não menos latino-americana por ser sincrética. Sem pretender ser sacral, esta lista não é uma sistematização mas sim uma proposta. Falamos de Ginastera na Argentina, Villa-Lobos no Brasil, Alejandro García Caturla e Amadeo Roldán em Cuba, bem como de Carlos Chávez e Silvestre Revueltas no México.
Ao falar do panorama composicional existente na Argentina nos séculos XIX e XX, um país tradicionalmente produtor de compositores, não podemos ignorar uma série de nomes encarregados de contribuir pan-americanistas, ares indigenistas e crioulos como Alberto Williams (1862-1952), Julián Aguirre (1868-1924), Carlos López Buchardo (1881-1948), Felipe Boero (1884-1958), Luis Gianneo (1897-1963) ou Gilardo Gilardi (1899-1963). Em relação ao movimento indigenista e apenas como um breve exemplo devemos mencionar as óperas Huemac e La Novia del Hereje de Pascual de Rogartis (1880-1980), Ollantay de Constantino Gaito e El Oro del Inca de Héctor Iglesias-Villoud (1913-1988), todas estreadas no Teatro Colón em Buenos Aires.
Mas talvez o pico mais alto da composição clássica-contemporânea argentina seja encarnado por Alberto Evaristo Ginastera. Não só porque surge como um criador unitário, mas também porque contribui com profunda originalidade nas obras que, lenta mas resolutamente, compõe ao longo do século XX. A sua obra cobre três etapas, a primeira, a folclorista, à qual se ligam os seus primeiros ballets, Panambí e Estancia, e na qual enfatiza o forte ritmo do seu país.
A segunda concentra-se nos anos cinquenta e marca uma abertura progressiva para as novas formas contemporâneas, entre as quais se destaca o dodecafonismo. Uma amostra desta etapa fervorosa será a obra-prima da poesia sonora como Concerto para a Harpa (1956) ou Cantata para a América Negra (1960). A sua terceira etapa conduz a uma espécie de dureza conceptual, uma vez que as suas obras já não são agradáveis ou lúdicas, mas deslizam para uma linguagem mais séria e agressiva, denotando uma etapa de procura da essência do homem num mundo convulsionado.
O Brasil musical de Heitor Villa-Lobos serve-lhe para quintessencializar uma nova forma de compor, que mesmo, paradoxalmente, o leva a influenciar, ele próprio, na forma de criar a nova música popular que leva ao tropicalismo nascido no final dos anos sessenta e em vigor há 20 anos. Para este eclético e multifacetado criador, a sua mensagem nunca foi nacionalista mas universal. Naturalmente, estava sempre circunscrita a formas específicas. A sua importância reside em ter reformulado o conceito de nacionalismo, sendo também responsável por aproximar o vanguardismo musical da cena latino-americana.
Nas suas composições prolíficas, mostra grande espontaneidade, dando lugar ao desenvolvimento da improvisação e apresentando uma enorme coloração instrumental. Tudo isto é palpável na extensa obra para piano desenvolvida (Prole do Bebê, por exemplo) e em obras posteriores como Impressoes Seresteiras, Festa do Sertao, ou nos seus famosos Choros (dos quais o mais conhecido é o Choro Nº5 Alma Brasileira).
Cuba pré-revolucionária contribuiu com dois nomes prioritários no campo da música de culto: Alejandro García Caturla (1906-1940) e Amadeo Roldán y Gardes (1900-1939). Por terem aparecido ao mesmo tempo e por terem partilhado ideias semelhantes, estes dois compositores formam uma dupla inseparável na história da música cubana. Seriam os primeiros compositores cubanos a conseguir uma verdadeira síntese entre os elementos étnicos que compõem a identidade nacional cubana e o plano sinfónico-compositivo trazido da Europa.
Discípula de Pedro San Juan e Nadia Boulanger, Caturla desenvolveu uma enorme obra da qual se destacam Tres Danzas Cubanas, Bembé, Obertura Cubana, La Rumba, a ópera Manita en el Suelo - com texto de Alejo Carpentier - e as composições para coro, Canto de los Cafetales, e Caballo Blanco. Por sua vez, Amadeo Roldán, violinista e compositor, vencedor do Prémio Sarasate, tem a seu crédito inúmeras obras, a mais conhecida das quais é La Rebambaramba (1928), descrita na altura como um "musicorama multicolorido" que transforma uma fiesta afro-cubana numa magnífica exibição de melodias caribenhas, incluindo um glissando incidental com uma mandíbula de burro.
Carlos Antonio de Padua Chávez (1899-1978) e Silvestre Revueltas (1899-1940) são os dois compositores que, no final do século XX, ainda dominam o panorama musical do México. Estes dois papas da criação latino-americana têm sido estereotipados de acordo com as suas preferências ideológicas: "Revueltas, o inculto e brilhante boémio; Chávez, o ditador da cultura oficial; Revueltas, o herói da esquerda, Chávez, o vilão da direita; Revueltas, o músico que escreve para o povo e expressa a sua dor, Chávez, o compositor árido e cerebral que triunfa nos EUA e ignora o povo mexicano", mas a realidade nunca é tão maniqueísta. Ambos foram grandes admiradores de autores como Stravinsky, Milhaud, Hindemith, ou Aaron Coplan, para não mencionar o facto de o estilo de ambos os músicos exaltar a primazia absoluta do ritmo como o gerador da composição.
Quanto ao repertório de obras, Carlos Chavez compôs, entre outros, Polígonos para Piano, Exagões para Voz, e Piano ou Energia para nove instrumentos, dentro de uma secção a que poderíamos chamar música científica e abstracta. Depois veio a sua conhecida Sinfonía India (1936) onde podemos vislumbrar um reforço do clima de celebração e do mexicanismo desenfreado. Finalmente, elaborou também 10 prelúdios para Piano e um ballet intitulado Caballos de Vapor. Revueltas, por outro lado, viu a sua vida encurtada numa idade precoce, mas a sua obra é invulgarmente rica. Vai desde peças para pequenos conjuntos como Ocho por radio (1933), a obras para grandes orquestras como Janitzio ou Sensemayá. Também poemas sinfónicos tais como Cuauhnáhuac, Esquinas ou o ballet El Renacuajo Paseador.
Século XXI
Nos últimos trinta anos do século XX, ocorre um fenómeno de essencialização das entidades latino-americanas, ao mesmo tempo que as línguas e a instrumentação mudam, de tal forma que algumas criações são submersas no mundo electrónico, sem perderem a sua vocação contemporânea. A força do movimento criativo ganha peso com a entrada no século XXI, momento em que o movimento musical em toda a América Latina se manifesta na proliferação dos seus grupos corais, orquestrais, solistas e compositores. Este último, abrange a mais vasta gama de tendências e correntes estéticas, sem abandonar a velha dialéctica entre a linguagem universal e a defesa de propostas com conteúdos de identidade regional. Ou seja, o que hoje se traduz em termos económicos e geopolíticos como Globalização e Mundialização.
Por Ezequiel Paz